sábado, 6 de outubro de 2007

A Direção de Fotografia, reflexão de Gilles Weyne

Desde que Narciso era Narciso e o homem era homem, ele sempre se apaixonou pela sua própria imagem.Desde as pinturas rupestres, o homem sentiu a necessidade de se representar e, por tabela, de se ver representado. A necessidade de se ver e o regozijo que isso lhe proporciona sempre foram fontes de inspiração e motivos para representar-se (a si mesmo ou a seu semelhante) seja numa obra estática (como um quadro, uma fotografia) seja numa obra em movimento (como uma peça de teatro). Representar-se num filme atinge então um grau de perfeição (não necessariamente de fidelidade) dificilmente alcançável por outra arte: o homem se representa em movimento, mas de maneira reproduzível, que se possa ser vista da mesma maneira inúmeras vezes. Porém, a sua representação e a imagem que ele tem de si mesmo dependem do seu ponto de vista (ou ângulo) não só metafórica, mas fisicamente também.

Deus criou o homem à sua imagem, dizem certas religiões; Deus criou o homem, dizem todas. Independentemente do seu credo, o homem (sem necessariamente ser religioso, basta ele viver numa sociedade fundada em conceitos religiosos)não só se vê ao ver o seu semelhante (e vice-versa: vê seu semelhante ao se ver), mas, principalmente, vê (seja em si mesmo seja no seu semelhante) a obra do seu Deus (ou da evolução darwiniana da sua espécie que seja). Ou seja, ao se ver, seja no espelho, seja na tela, o homem tanto se vê quanto vê a humanidade como um todo, como parte de um todo (seja esse todo fruto da criação de um Deus, seja ele devido às forças da natureza e dos anos).

As pinturas, das rupestres parietais às sofisticadíssimas renascentistas, só corroboram o fato de que o homem não só sempre gostou de se ver representado, como sempre gostou de se representar (seja no palco, na parede, no quadro ou na tela). Da mesma forma que quando o homem se vê, ele vê a humanidade como um todo, quando o homem se apresenta (no palco, no set) ou se representa (no quadro, na tela) ele representa ( ou apresenta) a humanidade como um todo: ao representar-se(apresentar-se), o homem representa a humanidade, ou seja, representa a criação do seu Deus ou (para os mais ateus) a evolução lógica da vida na terra.

A fotografia, como advento científico, só tornou mais acessível à maior parte da população a contemplação de entes queridos ou de si mesma (num último suspiro narcisista). O cinema é só, por tabela, uma representação, por mais em movimento que seja, de uma suposta realidade (como um retrato renascentista representa supostamente alguém, apesar desse “alguém” ter ficado parado, de fato, horas a fio). Realidade suposta ou porque se trata de um tema, por mais real que seja, reencenado, ou porque se trata de uma ficção, puro e simplesmente. Mesmo que o tema abordado não seja nem reencenado nem uma ficção, ou seja, mesmo que o tema seja um documentário; a escolha dos ângulos, das luzes, do som e, quem dirá, dos entrevistados, não deixa de ser uma suposta realidade.

O Homem gosta de se ver, gosta de ver o outro: o Homem gosta de ver (seja pelos olhos, seja através de outros sentidos: o Homem gosta de se comparar: da mesma forma que um deficiente visual vai tatear o rosto do seu interlocutor para “dar um rosto à voz”, se eles tiverem um mínimo de intimidade). A maior parte das deficiências inclusas, o Homem gosta de perceber. E se ele gosta de perceber o outro, ele gosta de ser percebido. Se ele gosta de assistir à humanidade, ele gosta de sentir que faz parte dela. Só dessa forma ele se sente como parte dela ou, pelo menos, à imagem dela.

Quando Narciso se viu espelhado no rio e se apaixonou por si mesmo, não podemos, como estetas, deixar de nos perguntar como ele se viu. Se Narciso estava, como diz a lenda, debruçado sobre o rio; tudo indica que o rosto dele estava na sombra, ou, no mínimo, numa penumbra: ou seja, apesar de estar em contra-luz, Narciso apaixonou-se por si mesmo. Afinal, ele, mais do que ninguém, sabia que o que lhe importava não era a luz, e sim a imagem (no caso, a do próprio rosto refletida).

Talvez não seja à toa que eu tenha me diplomado em escultura, porque o meu pai sempre foi um fotógrafo diletante e sempre me ensinou a encarar essa forma de representar o mundo como uma forma de expressão da subjetividade. Tanto ele me ensinou a fotografar quanto eu herdei a máquina fotográfica, analógica, dele. Máquina que sempre me ensinou mais do que a dominei. Fotografar não é só uma arte; fotografar é uma técnica. A máquina já tem a sua subjetividade através da sua lente: uma fish eye já não “diz” a mesma coisa que uma tele-objetiva. Como se colocar entre a lente e o filme, a ser impresso, é a grande questão, o grande desafio. Adotar a função do espelho/obturador é a sina do fotógrafo. Nada é fortuito. Nada é fruto do acaso.

A fotografia, como a de cinema, é um tiro no escuro. Vik Muniz já dissera, aqui em Fortaleza (citando alguém de quem não lembro, e, se duvidar, nem ele se lembrou), que a fotografia era o recorte no espaço-tempo de algo que o fotógrafo (sujeito com um olho no visor e outro fechado) não viu, não presenciou: a fotografia é para o fotógrafo a lembrança do momento que ele não viu (a partir do momento em que quando ele bateu a fotografia, o obturador escureceu a sua vista e, portanto, não viu o que acontecia na hora, no instante da fotografia).

Ao adquirir movimento, a fotografia já deixa de ser a representação de um instante e passa a representar uma secessão de instantes.Como formado em escultura, sei que o volume só se dá com a luz, só existe por causa da luz. É, então, difícil, escolher entre o volume e a luz. Eu me diplomei em “volume” e me deparo com uma matéria que sempre me atraiu (se é que não me incitou a seguir a carreira que segui). Mas essa matéria não é traiçoeira só porque ela existe pelo simples fato de que se há luz, há escuridão, e sim porque os/nos/me representa.

Diretor de fotografia atira no escuro. Ele não sabe qual será o resultado final: ele faz idéia, mas não sabe com 100% de certeza. Já um diretor de arte (para o qual eu já tenho mais inclinação) sabe, ao montar o set, se o trabalho dele funciona ou não. O diretor de fotografia tem de confiar, além de em si mesmo, nos profissionais envolvidos no tratamento do seu trabalho: a película. É uma profissão de fé. É uma profissão que além da sensibilidade requer conhecimento técnico: que lente, que luz, que ângulo, etc.

Diretor de fotografia sabe e ousa, só não sabe se o que ousa caberá. Diretor de fotografia é um ser estranho, paranormal, que já pré-sente o que virá, pelo menos, o que virá na tela. Ele tem um pleno e total conhecimento de lentes, filtros e efeitos e das suas respectivas conseqüências visuais. Ele é o pintor da tela. O diretor de arte escolha qual objeto e onde ele será colocado; já o diretor de fotografia escolhe o que e como mostrá-lo ou escondê-lo.

Se o diretor de arte brinca com os objetos, o diretor de fotografia brinca com como eles vão aparecer na tela. Como ele vai dar o devido volume, ou não, a eles. Além de tomar decisões cruciais para o filme (para cada fotograma), o diretor de fotografia ainda tem que se preocupar problemas inerentes ao roteiro: seqüência de cenas, continuidade, verossimilhança, etc.

Nunca pensei em ser diretor de fotografia, talvez por nunca ter sentido firmeza nas minhas escolhas fotográficas. Essa semana de aula tanto me apavorou quanto me fascinou para com o assunto e a técnica tratados. Ser diretor de fotografia soa vários tiros no escuro e a cada tiro: um clarão. Dirigir a fotografia é o mesmo que decidir para onde vai cada raio, cada facho, cada sol ou cada lua. Até receber o copião, ser diretor de fotografia é, talvez, uma das mais vulneráveis funções do set de filmagem: a função que ao mesmo tempo é a que mais manda (e desmanda) e a que mais é cobrada.


Gilles Weyne
Artísta plástico e aluno da Escola de Audiovisual de Fortaleza

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